João Carrascoza
Estavam
sentados no sofá, marido e mulher, cada um com seu prato na mão, quando ocorreu
o blecaute. Um grito ecoou pela vizinhança, sinal de que não fora problema só
deles, um fusível queimado. A todos de uma só vez a escuridão engoliu. Em
seguida, a quietude dos grandes sobressaltos.
O susto apagou
também a tranquilidade do casal. A surpresa os mastiga, vorazmente, assim como
mastigam a última garfada de comida que haviam levado à boca.
- Carajo! -
Ramon grita, e se levanta.
Corre para
desligar a televisão, podem perdê-la se a luz retornar de uma hora para outra.
Sorte não existir nada à frente, mesa ou cadeira, que lhe tornasse o caminho
perigoso, vantagem de se viver em casa modesta e não ter crianças.
- Não dá pra
comer desse jeito!
Desde que se
casaram, as noites de ambos têm sido tranquilas. Deviam antes agradecer, dádiva
magnífica essa escuridão, mas reclamar é do homem, como o corte é da tesoura.
- Será que
vai demorar? - Lúcia pergunta, engolindo a comida.
- Eu que sei?
- ele resmunga, voltando ao sofá. - Não vejo nada.
Por um
momento, imóveis e esperançosos, aguardam o milagre. Como se o blecaute fosse
apenas um piscar de olhos da realidade; a luz nem bem sumiu, já reapareceria.
A escuridão
continua, plena, é preciso habituar os olhos. O silêncio se debate, como um
coração, ou dois, entre as paredes.
- Vou buscar
uma vela - diz Lúcia, erguendo-se.
Nascida entre
as montanhas de Minas, sobra-lhe serenidade, precisa acalmar o marido, este
espanhol explode fácil. Mas, se tem pavio curto, a quantidade de pólvora é
mínima. Furioso num instante, resignado no outro. Nesta noite, tem razão em
reclamar, difícil encontrar alguém satisfeito com o inesperado. Há quem esteja
em apuro maior, sob o chuveiro, ao pé do fogão, dentro de um elevador.
- Não precisa
- ele ruge. - Perdi a fome.
A luz dos
faróis de um carro ricocheteia na vidraça da sala. O súbito clarão revela um
vulto inerte, outro a oscilar, duas faces pálidas, já de volta ao escuro.
Lúcia se
esgueira pelo corredor, medindo os passos, como uma equilibrista, os olhos
abertos mas vendados, o prato flutua em sua mão vacilante. Ela, sim, deveria se
impacientar. Com a falta de luz, não poderá arrematar as costuras do Carnaval
para o dia seguinte.
Na cozinha,
ela coloca o prato sobre o mármore da pia e, às apalpadelas, procura pela caixa
de fósforos. Não a encontra, e quem a toma pela mão é o medo, estranha
lembrança de lápides, densa presença da morte. A mulher procura entre as
panelas no fogão, os olhos distinguem alguns contornos, atenuaram-se as
sombras, a sólida obscuridade se ameniza, o marido, quando irritado, se
expressa em língua materna:
- Me cago en
Dios!
Lúcia achou a
caixa de fósforos, riscou um palito, a chama titubeia e já se apruma. Rápida,
ela abre uma gaveta do armário, sabe o que falta e o que sobra em casa, ali há
um maço de velas, não para urgências como a de hoje, mas para louvar São Paulo,
santo de quem é devota, desde menina, em Ouro Preto. Antes
que o palito se queime inteiramente, ela já passou o fogo para um toco de vela.
O pequeno facho de luz surpreende a escuridão, detém-na, mas não a domina, o
exército das sombras é incontável.
Estão os dois, marido e mulher,
novamente sentados no sofá, o prato nas mãos, a comida ainda não esfriou,
embora seu sabor tenha se alterado, para melhor, jantam agora à luz de vela.
Ramon serenou, Lúcia leva o garfo à boca e o observa furtivamente. Há pouco
assistiam TV, distantes um do outro e, de súbito, ele pode sentir a respiração
de Lúcia, ela pode escutá-lo mastigando ruidosamente a comida, os dentes sadios
e afiados.
Não há nenhum
castiçal dourado, mesa com requintes, nem dois cálices de xerez. Tampouco
alguém para lhes servir à mesa. A vela, grudada a um pires, humilde feito uma
coluna em ruínas, derrete silenciosamente. A chama projeta na parede duas
sombras, estremecidas, que a um gesto de Lúcia parecem se fundir numa única.
Apesar do mal-humor, Ramon come com prazer.
À beira da chama miúda, a agulha do acaso ou de Deus costura uma atmosfera
acolhedora. Se a sombra se projeta em parede de tijolo ou rocha, tanto faz, a
quietude da sala recorda o eco em uma gruta.
- A gente
comendo à luz de vela - ela comenta, limpando os lábios gordurosos. - É até
engraçado!
- Não vejo
graça nenhuma - ele resmunga. - Se a luz não voltar, vamos ter de tomar banho
frio.
- Vai voltar
- ela diz. - Tenho encomenda pra amanhã.
- Pro
Carnaval?
- É!
- Pode
esquecer.
- Às vezes
vem rápido - ela diz. - Quem sabe dá até pra pegar o finzinho do jornal.
Se ainda não
estão próximos, pelo menos o blecaute reduziu a distância entre eles. Há muito
não permaneciam assim, juntos e quietos, um a medir o silêncio do outro,
jantando sem a interferência das notícias, voltados para suas vidas, não para o
vídeo.
Outro carro
irrompe lá fora, cortando a paz da noite. O bairro permanece às escuras. Em
todas as casas, a refletir nos vidros, a chama das velas tremula, confundindo
sombras, vultos que bailam como fantasmas.
Lúcia recolhe
os pratos, curta foi a refeição, apesar de interrompida, longa será a próxima
hora, sem a TV para hipnotizar Ramon no sofá, a costura para manter a mulher
ocupada.
Ela deixa a
vela para o marido, acende outra na cozinha, é preciso lavar toda a louça,
tarefa difícil à meia-luz, mas poderia realizá-la de olhos fechados, se é que
já não o faz hoje.
A vela da
sala logo se junta à da cozinha. Sem o que fazer, o marido vem ajudá-la. Para
surpresa de Lúcia, Ramon pega do pano, gesto proibido aos homens, mesmo
meninos, na sua Espanha, e vai enxugando silenciosamente os talheres.
- Onde ponho
isso? - ele pergunta, a escumadeira nas mãos, sem saber qual a sua utilidade.
- Ali,
naquela gaveta - ela responde, apontando com as mãos ensaboadas, ele a guarda
na gaveta errada, mais abaixo.
Não há
crianças na casa, bem que gostariam, mas Lúcia não conseguiu ainda, triste
anomalia, quem sabe um novo tratamento resolva o seu caso.
- Acho que
desta vez vai demorar - ela diz.
- Já me
conformei - ele comenta, depois de enxugar os dois copos. - Vou perder o jogo
do Corinthians.
- O escuro me
lembra a infância - ela diz. - Faltava luz quando chovia. Minha mãe queimava
ervas pra Santa Rita.
- A minha
rezava pra Virgem de Macarena. - ele diz. - E contava histórias. Juntava as
mãos e das sombras na parede saía tudo quanto é bicho.
- Eu morria
de medo.
- Eu também.
- Parecia o
fim do mundo.
- A gente ia
pra cama mais cedo.
- Tomava
banho de bacia.
Ele sorriu,
ela também.
Faltam só
duas panelas e a cozinha logo estará em ordem; com um ajudante, mesmo
desajeitado, vai-se mais rápido.
- Se quiser
banho quente, posso ferver um caldeirão de água - ela diz, terminando o
serviço.
Ramon
permanece calado. Com o pano de prato entre os dedos, abre a porta dos fundos e
o pendura no varal. Lá fora, o escuro palpita, a quietude se desdobra pela
noite, o ar úmido é como seda no rosto. Uma luminosidade se insinua acima do
muro e, só quando ergue os olhos, ele descobre, boquiaberto, as estrelas
pulsando no espaço.
- Coño!
Lúcia vem em
sua direção, nem sonha com mais esta surpresa da noite.
- Nossa!
As duas velas
ardem na pia, o casal observa os astros. Por alguns minutos, vão permanecer
mudos, como crianças, girando a cabeça para ver as estrelas.
- A última
vez que vi um céu assim, a gente tinha começado a namorar - diz Ramon, antes de
voltar à cozinha.
- Lembro bem
- ela emenda. - Foi na varanda de casa. Você declamou um poema de Garcia Lorca.
Ele fecha a
porta, ela vai enchendo o caldeirão de água, conhece bem seu marido, hoje está
lhe recordando outro, aquele com forte sotaque, que lhe despertou a atenção no
passado.
Ramon apanha
uma das velas e se enfia pelo corredor, sorrateiro e hesitante como um
espectro. O breve fulgor da chama desenha estranhas imagens nas paredes, que já
retornam à escuridão. No quarto, ele abre o guarda-roupa e algo se desprende lá
do fundo, vem sobre ele, vai cair no assoalho, se não o amparar. O susto lhe
retarda a ação e, quando se move, não pode mais evitar a queda do objeto. Ao
tosco ruído da madeira contra o chão sucede o alegre retinir das cordas. É o
seu violão gitano, de muito uso ontem, quase nenhum hoje.
- Mierda!
Em boa hora
vem este violão, desafinado, uma película de pó o cobre, se o dono não vai até
ele, eis que o próprio se move. As velas queimam, uma apoiada no pires sobre o
criado-mudo, outra na pia da cozinha, Lúcia à beira do fogão zelando pela água,
há quanto tempo ele não lhe canta uma música?
O marido
recolhe o instrumento e se faz a mesma pergunta, nem parece que há uma massa de
trevas a separá-los, o essencial é que se tocam, se por pele ou pensamento, não
importa. Ramon segura o violão um instante, antes de recostá-lo à cabeceira da
cama, a única riqueza que trouxe de sua terra, além da que lhe vai no sangue.
Vira-se para o guarda-roupa em busca de short e camiseta, tomar banho é o
próximo programa da noite. Se esperasse um pouco, talvez a luz voltasse, mas
Lúcia já aqueceu a água, seria triste desapontá-la.
Ela se
esqueceu da costura para o dia seguinte, controla a fervura no caldeirão e em
outra panela que levou ao fogo. Dos dois, é quem primeiro sente a dádiva cosida
pelo blecaute, já a recebeu outras vezes, chovia forte e costumava faltar luz em Ouro Preto. O
terceiro pires, com um toco de vela a arder, repousa na mesa da cozinha, para a
borda da banheira Lúcia o conduzirá, vai misturar as duas águas, a fria
primeiro, jato de torneira e, em seguida, a fervente, do caldeirão.
Ramon se
despe devagar. Três velas clareiam suas pernas peludas, seu pênis recolhido,
suas largas espáduas, e Lúcia, refletida no espelho, tanto quanto as chamas que
tremulam, vê o marido deslizar pela banheira, uma contração na face, a água
elemental a lhe ungir o corpo.
- Muito
quente? - ela pergunta.
- Não - ele
responde.
- Vou ferver
mais um caldeirão!
Ramon fecha
os olhos, uma delícia o torpor que sente. Desde que haviam alugado a casa,
reclamava da banheira. Nunca a haviam usado, queriam substituí-la por um box.
Ele agora experimenta uma inesperada sensação de abandono, como se a solidão
lhe cutucasse e, então, chamou:
- Lúcia!
A costureira, inclinada sobre o fogão,
cercada pelas trevas, ouviu o chamado, mas aguardou. Manteve-se imóvel, sabia
que Ramon a chamaria de novo, e de fato ele o fez:
- Por que não
vem?
Ela foi.
Três chamas
tremulam outra vez, juntas, sombras por todos os lados, mais parece um altar
esse banheiro silencioso. Lúcia se desnuda, ligeira, os seios cônicos, a
cintura delgada, as coxas fartas. Entra na banheira, pela extremidade oposta,
para não incomodar o marido, e ficar à frente dele. Apesar da leveza de seu
gesto, a água já morna rumoreja à sua entrada. Ramon afasta as pernas para que
ela se encaixe.
- Bueno.
- Sí,
bueno...
Os dois
cerraram os olhos. Ela sente cócegas nos pés e os move com suavidade, roçando
sem querer o pênis dele. Ramon abre os olhos, o desejo renasce, sob a água que
esfria, em meio às coxas apertadas, eis o púbis de Lúcia onde começa outra
noite.
Não tardará
para que o pênis se alongue, os braços se apertem, os corpos se entendam, e o
chão se molhe.
Depois, com
as pernas trêmulas, Ramon ajudará Lúcia a arrumar o banheiro, segunda cortesia
que lhe faz esta noite. Duas velas já agonizam e, antes que se apaguem, cumpre
acender outra e levá-la à sala.
Envolvida
numa camisola, Lúcia se senta no sofá. A casa permanece em ordem, cada coisa em
seu lugar, exceto a costura, mas até onde vai sua culpa se faltou luz?
Segurando um
pires, Ramon se enfurnou pelo quarto, voltará metido em seu pijama, na outra
mão, o violão gitano.
A mulher o
observa, atônita, a última vez que ele tocou foi há um ano, mais pelo ócio que
pela paixão.
- Vai tocar?
- ela pergunta.
Nem no claro se descobriria que seus
olhos sorriem. Vacila sua silhueta com a luz das velas, assim como as mãos de
Ramon, apoiando o violão no ventre. Por alguns minutos, ele se ocupa em afinar
o instrumento. Gira as tarraxas, estica uma corda, afrouxa outra, inclina-o,
recoloca-o na posição inicial, braço contra braço. O toque de seus dedos agora
é outro, não como da última vez. Depois de percorrerem o corpo amado, mais
habilidosos se tornaram.
Ao longe, a
sirena de uma viatura. Outro automóvel rasga a rua ao lado. A sombra na parede
é enganadora, revela apenas um homem e seu violão. E ele o dedilha,
compenetrado; Lúcia observa, condescendente, é o intróito de uma clássica
canção sevilhana. Sofrível, diriam os entendidos, a performance de Ramon, mas
não teria graça nenhuma se em seu lugar estivesse Andrés Segóvia.
Uma linha
puxa outra e outra e outra, até que se constitua um tecido. Assim também se dá
com a música. De uma, o homem vai a outra. A primeira, só melodia. A segunda,
acrescida de canto, mas voz única. A terceira, e as outras, duas vozes
desafiando a escuridão.
Os dois
cantam, como há muito não faziam, esquecidos do futebol, das agulhas, do
blecaute. Percebem, mas não se importam, que uma das velas se apaga, as sombras
crescem ao redor, ameaçando engolir tudo.
A segunda
vela derrete, está quase no fim. Lúcia poderia ir à cozinha apanhar outra.
Ramon ao banheiro, aliviar-se. Mas não, outra sevilhana já foi iniciada. As
posições no instrumento ele conhece de olhos fechados. Ela sabe a letra, o
marido as ensinou, tantas. E, então, na calmaria da noite, submersos no escuro,
continuaram a cantar.
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