Iluminados


Sarita Erthal | 22:29 |

João Carrascoza


Iluminados
        Estavam sentados no sofá, marido e mulher, cada um com seu prato na mão, quando ocorreu o blecaute. Um grito ecoou pela vizinhança, sinal de que não fora problema só deles, um fusível queimado. A todos de uma só vez a escuridão engoliu. Em seguida, a quietude dos grandes sobressaltos.
        O susto apagou também a tranquilidade do casal. A surpresa os mastiga, vorazmente, assim como mastigam a última garfada de comida que haviam levado à boca.
         - Carajo! - Ramon grita, e se levanta.
         Corre para desligar a televisão, podem perdê-la se a luz retornar de uma hora para outra. Sorte não existir nada à frente, mesa ou cadeira, que lhe tornasse o caminho perigoso, vantagem de se viver em casa modesta e não ter crianças.
         - Não dá pra comer desse jeito!
         Desde que se casaram, as noites de ambos têm sido tranquilas. Deviam antes agradecer, dádiva magnífica essa escuridão, mas reclamar é do homem, como o corte é da tesoura.
         - Será que vai demorar? - Lúcia pergunta, engolindo a comida.
         - Eu que sei? - ele resmunga, voltando ao sofá. - Não vejo nada.
         Por um momento, imóveis e esperançosos, aguardam o milagre. Como se o blecaute fosse apenas um piscar de olhos da realidade; a luz nem bem sumiu, já reapareceria.
         A escuridão continua, plena, é preciso habituar os olhos. O silêncio se debate, como um coração, ou dois, entre as paredes.
         - Vou buscar uma vela - diz Lúcia, erguendo-se.
         Nascida entre as montanhas de Minas, sobra-lhe serenidade, precisa acalmar o marido, este espanhol explode fácil. Mas, se tem pavio curto, a quantidade de pólvora é mínima. Furioso num instante, resignado no outro. Nesta noite, tem razão em reclamar, difícil encontrar alguém satisfeito com o inesperado. Há quem esteja em apuro maior, sob o chuveiro, ao pé do fogão, dentro de um elevador.
         - Não precisa - ele ruge. - Perdi a fome.
         A luz dos faróis de um carro ricocheteia na vidraça da sala. O súbito clarão revela um vulto inerte, outro a oscilar, duas faces pálidas, já de volta ao escuro.
         Lúcia se esgueira pelo corredor, medindo os passos, como uma equilibrista, os olhos abertos mas vendados, o prato flutua em sua mão vacilante. Ela, sim, deveria se impacientar. Com a falta de luz, não poderá arrematar as costuras do Carnaval para o dia seguinte.
         Na cozinha, ela coloca o prato sobre o mármore da pia e, às apalpadelas, procura pela caixa de fósforos. Não a encontra, e quem a toma pela mão é o medo, estranha lembrança de lápides, densa presença da morte. A mulher procura entre as panelas no fogão, os olhos distinguem alguns contornos, atenuaram-se as sombras, a sólida obscuridade se ameniza, o marido, quando irritado, se expressa em língua materna:
         - Me cago en Dios!
         Lúcia achou a caixa de fósforos, riscou um palito, a chama titubeia e já se apruma. Rápida, ela abre uma gaveta do armário, sabe o que falta e o que sobra em casa, ali há um maço de velas, não para urgências como a de hoje, mas para louvar São Paulo, santo de quem é devota, desde menina, em Ouro Preto. Antes que o palito se queime inteiramente, ela já passou o fogo para um toco de vela. O pequeno facho de luz surpreende a escuridão, detém-na, mas não a domina, o exército das sombras é incontável.
         Estão os dois, marido e mulher, novamente sentados no sofá, o prato nas mãos, a comida ainda não esfriou, embora seu sabor tenha se alterado, para melhor, jantam agora à luz de vela. Ramon serenou, Lúcia leva o garfo à boca e o observa furtivamente. Há pouco assistiam TV, distantes um do outro e, de súbito, ele pode sentir a respiração de Lúcia, ela pode escutá-lo mastigando ruidosamente a comida, os dentes sadios e afiados.
         Não há nenhum castiçal dourado, mesa com requintes, nem dois cálices de xerez. Tampouco alguém para lhes servir à mesa. A vela, grudada a um pires, humilde feito uma coluna em ruínas, derrete silenciosamente. A chama projeta na parede duas sombras, estremecidas, que a um gesto de Lúcia parecem se fundir numa única.
         Apesar do mal-humor, Ramon come com prazer. À beira da chama miúda, a agulha do acaso ou de Deus costura uma atmosfera acolhedora. Se a sombra se projeta em parede de tijolo ou rocha, tanto faz, a quietude da sala recorda o eco em uma gruta.
         - A gente comendo à luz de vela - ela comenta, limpando os lábios gordurosos. - É até engraçado!
         - Não vejo graça nenhuma - ele resmunga. - Se a luz não voltar, vamos ter de tomar banho frio.
         - Vai voltar - ela diz. - Tenho encomenda pra amanhã.
         - Pro Carnaval?
         - É!
         - Pode esquecer.
         - Às vezes vem rápido - ela diz. - Quem sabe dá até pra pegar o finzinho do jornal.
         Se ainda não estão próximos, pelo menos o blecaute reduziu a distância entre eles. Há muito não permaneciam assim, juntos e quietos, um a medir o silêncio do outro, jantando sem a interferência das notícias, voltados para suas vidas, não para o vídeo.
         Outro carro irrompe lá fora, cortando a paz da noite. O bairro permanece às escuras. Em todas as casas, a refletir nos vidros, a chama das velas tremula, confundindo sombras, vultos que bailam como fantasmas.
         Lúcia recolhe os pratos, curta foi a refeição, apesar de interrompida, longa será a próxima hora, sem a TV para hipnotizar Ramon no sofá, a costura para manter a mulher ocupada.
         Ela deixa a vela para o marido, acende outra na cozinha, é preciso lavar toda a louça, tarefa difícil à meia-luz, mas poderia realizá-la de olhos fechados, se é que já não o faz hoje.
         A vela da sala logo se junta à da cozinha. Sem o que fazer, o marido vem ajudá-la. Para surpresa de Lúcia, Ramon pega do pano, gesto proibido aos homens, mesmo meninos, na sua Espanha, e vai enxugando silenciosamente os talheres.
         - Onde ponho isso? - ele pergunta, a escumadeira nas mãos, sem saber qual a sua utilidade.
         - Ali, naquela gaveta - ela responde, apontando com as mãos ensaboadas, ele a guarda na gaveta errada, mais abaixo.
         Não há crianças na casa, bem que gostariam, mas Lúcia não conseguiu ainda, triste anomalia, quem sabe um novo tratamento resolva o seu caso.
         - Acho que desta vez vai demorar - ela diz.
         - Já me conformei - ele comenta, depois de enxugar os dois copos. - Vou perder o jogo do Corinthians.
         - O escuro me lembra a infância - ela diz. - Faltava luz quando chovia. Minha mãe queimava ervas pra Santa Rita.
         - A minha rezava pra Virgem de Macarena. - ele diz. - E contava histórias. Juntava as mãos e das sombras na parede saía tudo quanto é bicho.
         - Eu morria de medo.
         - Eu também.
         - Parecia o fim do mundo.
         - A gente ia pra cama mais cedo.
         - Tomava banho de bacia.
         Ele sorriu, ela também.
         Faltam só duas panelas e a cozinha logo estará em ordem; com um ajudante, mesmo desajeitado, vai-se mais rápido.
         - Se quiser banho quente, posso ferver um caldeirão de água - ela diz, terminando o serviço.
         Ramon permanece calado. Com o pano de prato entre os dedos, abre a porta dos fundos e o pendura no varal. Lá fora, o escuro palpita, a quietude se desdobra pela noite, o ar úmido é como seda no rosto. Uma luminosidade se insinua acima do muro e, só quando ergue os olhos, ele descobre, boquiaberto, as estrelas pulsando no espaço.
         - Coño!
         Lúcia vem em sua direção, nem sonha com mais esta surpresa da noite.
         - Nossa!
         As duas velas ardem na pia, o casal observa os astros. Por alguns minutos, vão permanecer mudos, como crianças, girando a cabeça para ver as estrelas.
         - A última vez que vi um céu assim, a gente tinha começado a namorar - diz Ramon, antes de voltar à cozinha. 
         - Lembro bem - ela emenda. - Foi na varanda de casa. Você declamou um poema de Garcia Lorca.
         Ele fecha a porta, ela vai enchendo o caldeirão de água, conhece bem seu marido, hoje está lhe recordando outro, aquele com forte sotaque, que lhe despertou a atenção no passado.
         Ramon apanha uma das velas e se enfia pelo corredor, sorrateiro e hesitante como um espectro. O breve fulgor da chama desenha estranhas imagens nas paredes, que já retornam à escuridão. No quarto, ele abre o guarda-roupa e algo se desprende lá do fundo, vem sobre ele, vai cair no assoalho, se não o amparar. O susto lhe retarda a ação e, quando se move, não pode mais evitar a queda do objeto. Ao tosco ruído da madeira contra o chão sucede o alegre retinir das cordas. É o seu violão gitano, de muito uso ontem, quase nenhum hoje.
         - Mierda!
         Em boa hora vem este violão, desafinado, uma película de pó o cobre, se o dono não vai até ele, eis que o próprio se move. As velas queimam, uma apoiada no pires sobre o criado-mudo, outra na pia da cozinha, Lúcia à beira do fogão zelando pela água, há quanto tempo ele não lhe canta uma música?
         O marido recolhe o instrumento e se faz a mesma pergunta, nem parece que há uma massa de trevas a separá-los, o essencial é que se tocam, se por pele ou pensamento, não importa. Ramon segura o violão um instante, antes de recostá-lo à cabeceira da cama, a única riqueza que trouxe de sua terra, além da que lhe vai no sangue. Vira-se para o guarda-roupa em busca de short e camiseta, tomar banho é o próximo programa da noite. Se esperasse um pouco, talvez a luz voltasse, mas Lúcia já aqueceu a água, seria triste desapontá-la.
         Ela se esqueceu da costura para o dia seguinte, controla a fervura no caldeirão e em outra panela que levou ao fogo. Dos dois, é quem primeiro sente a dádiva cosida pelo blecaute, já a recebeu outras vezes, chovia forte e costumava faltar luz em Ouro Preto. O terceiro pires, com um toco de vela a arder, repousa na mesa da cozinha, para a borda da banheira Lúcia o conduzirá, vai misturar as duas águas, a fria primeiro, jato de torneira e, em seguida, a fervente, do caldeirão.
         Ramon se despe devagar. Três velas clareiam suas pernas peludas, seu pênis recolhido, suas largas espáduas, e Lúcia, refletida no espelho, tanto quanto as chamas que tremulam, vê o marido deslizar pela banheira, uma contração na face, a água elemental a lhe ungir o corpo.
         - Muito quente? - ela pergunta.
         - Não - ele responde.
         - Vou ferver mais um caldeirão!
         Ramon fecha os olhos, uma delícia o torpor que sente. Desde que haviam alugado a casa, reclamava da banheira. Nunca a haviam usado, queriam substituí-la por um box. Ele agora experimenta uma inesperada sensação de abandono, como se a solidão lhe cutucasse e, então, chamou:
         - Lúcia!
         A costureira, inclinada sobre o fogão, cercada pelas trevas, ouviu o chamado, mas aguardou. Manteve-se imóvel, sabia que Ramon a chamaria de novo, e de fato ele o fez:
         - Por que não vem?
         Ela foi.
         Três chamas tremulam outra vez, juntas, sombras por todos os lados, mais parece um altar esse banheiro silencioso. Lúcia se desnuda, ligeira, os seios cônicos, a cintura delgada, as coxas fartas. Entra na banheira, pela extremidade oposta, para não incomodar o marido, e ficar à frente dele. Apesar da leveza de seu gesto, a água já morna rumoreja à sua entrada. Ramon afasta as pernas para que ela se encaixe.
         - Bueno.
         - Sí, bueno...
         Os dois cerraram os olhos. Ela sente cócegas nos pés e os move com suavidade, roçando sem querer o pênis dele. Ramon abre os olhos, o desejo renasce, sob a água que esfria, em meio às coxas apertadas, eis o púbis de Lúcia onde começa outra noite.
         Não tardará para que o pênis se alongue, os braços se apertem, os corpos se entendam, e o chão se molhe.
         Depois, com as pernas trêmulas, Ramon ajudará Lúcia a arrumar o banheiro, segunda cortesia que lhe faz esta noite. Duas velas já agonizam e, antes que se apaguem, cumpre acender outra e levá-la à sala.
         Envolvida numa camisola, Lúcia se senta no sofá. A casa permanece em ordem, cada coisa em seu lugar, exceto a costura, mas até onde vai sua culpa se faltou luz?
         Segurando um pires, Ramon se enfurnou pelo quarto, voltará metido em seu pijama, na outra mão, o violão gitano.
         A mulher o observa, atônita, a última vez que ele tocou foi há um ano, mais pelo ócio que pela paixão.
         - Vai tocar? - ela pergunta.
         Nem no claro se descobriria que seus olhos sorriem. Vacila sua silhueta com a luz das velas, assim como as mãos de Ramon, apoiando o violão no ventre. Por alguns minutos, ele se ocupa em afinar o instrumento. Gira as tarraxas, estica uma corda, afrouxa outra, inclina-o, recoloca-o na posição inicial, braço contra braço. O toque de seus dedos agora é outro, não como da última vez. Depois de percorrerem o corpo amado, mais habilidosos se tornaram.
         Ao longe, a sirena de uma viatura. Outro automóvel rasga a rua ao lado. A sombra na parede é enganadora, revela apenas um homem e seu violão. E ele o dedilha, compenetrado; Lúcia observa, condescendente, é o intróito de uma clássica canção sevilhana. Sofrível, diriam os entendidos, a performance de Ramon, mas não teria graça nenhuma se em seu lugar estivesse Andrés Segóvia.
         Uma linha puxa outra e outra e outra, até que se constitua um tecido. Assim também se dá com a música. De uma, o homem vai a outra. A primeira, só melodia. A segunda, acrescida de canto, mas voz única. A terceira, e as outras, duas vozes desafiando a escuridão.
         Os dois cantam, como há muito não faziam, esquecidos do futebol, das agulhas, do blecaute. Percebem, mas não se importam, que uma das velas se apaga, as sombras crescem ao redor, ameaçando engolir tudo.
         A segunda vela derrete, está quase no fim. Lúcia poderia ir à cozinha apanhar outra. Ramon ao banheiro, aliviar-se. Mas não, outra sevilhana já foi iniciada. As posições no instrumento ele conhece de olhos fechados. Ela sabe a letra, o marido as ensinou, tantas. E, então, na calmaria da noite, submersos no escuro, continuaram a cantar.

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