Caio Fernando Abreu
A primeira vez que a viu foi rapidamente, entre um tropeço e
uma corrida para não perder o ônibus. Mesmo assim, teve certeza de que havia
sido feita apenas para ele. No ônibus, não houve tempo para pensá-la mais
detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em
frente à vitrine para observá-la. Era nada menos que perfeita na sua cor
vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito
alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque. Disfarçado,
observou o preço e, em seguida, retomou o caminho. Cara demais, pensou, e
enquanto pensava decidiu não pensar mais no assunto.
Quase conseguiu — até o dia seguinte quando, voltando pela
mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte de
veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou. E
imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. No ônibus, observou
impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares
em suas colorações precisas, sem a menor magia. Pelo vidro da janela analisou
sua própria gravata, e decepcionou-se constatando-a igual a todas as outras. Em
casa, atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio
jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar — mas um pouco mais tarde,
jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão,
surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem
possuí-la. Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos,
algumas fomes a mais. Deitado, a cama pareceu menos vazia que de costume. Na manhã
seguinte, tomou a decisão: dentro de um mês, ela seria sua. Passou na loja,
mandou reservá-la, quase envergonhado por fazê-la esperar tanto. Que ela,
sabia, também ansiava por ele.
Trinta dias depois ela estava em suas mãos. Apalpou-a
sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e cintilantes, de
recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela — o trivial não seria
suficientemente expressivo, nem mesmo o meramente correto seria capaz de
atingi-la: metafísicas, budismos, antropologias. Permaneceu deitado durante
muito tempo, a observá-la sobre a colcha azul. Dos mais variados ângulos, ela
continuava a mesma, terrivelmente bela, vaga e inatingível — mesmo ali, sobre a
cama dele, mesmo com a nota de compra e o talão de cheques um pouco mais magro
ao lado. Olhava os sapatos, as meias, a calça, a camisa — e não conseguia
evitar uma espécie de sentimento de inferioridade: nada era digno dela. Um
pouco mais tarde abriu o guarda-roupa e então deixou que um soluço comprimisse
subitamente seu peito de coração ardente, como duas mãos que apertassem para
depois libertá-lo em algumas lágrimas desiludidas. Não era possível. Não podia
obrigá-la, tão nobre, a servir de companhia àqueles ternos, sapatos e camisas
antigos, gastos, vulgares, cinzentos. Foi depois de olhar perdido para o
assoalho que teve como um repente de lucidez. Então encarou agressivo a
impassibilidade da gravata e disse:
– Você é minha. Você não passa de um objeto. Não importa que
tenha vindo de longe para pousar entre coisas caras na vitrine de uma loja
rica. Eu comprei você. Posso usá-la à hora que quiser. Como e onde quiser. Você
não vai sentir nada, porque não passa de um pedaço de pano estampado. Você é
uma coisa morta. Você é uma coisa sem alma. Você...
Não conseguiu ir adiante. A voz dele estremeceu e falhou bem
no meio de uma palavra dura, exatamente como se estivesse blasfemando e Deus o
houvesse castigado. Um Deus de plástico, talvez de acrílico ou néon. Olhou
desamparado para o sábado acontecendo por trás das janelas entreabertas e, sem
cessar, para a colcha azul sobre a cama, logo abaixo da janela e, mais uma vez,
para a gravata exposta em seu suporte de veludo pesado, vermelho.
Ele enxugou os olhos, encaminhou-se para a estante. Abriu um
dicionário. Leu em voz alta:
Gravata S. f: lenço, manta ou fita que os homens, em trajes
não-caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa,
atando-a adiante com um nó ou laço. Golpe no pescoço, em algumas lutas
esportivas. Golpe sufocante, aplicado com o braço no pescoço da vítima,
enquanto um comparsa lhe saqueia as algibeiras.
Suspirou, tranquilizado. Não havia mistério. Colocou o
dicionário de volta na estante e voltou-se para encará-la novamente. E tremeu.
Alguma coisa como um pressentimento fez com que suas mãos se chocassem de
repente num entrelaçar de dedos. E suspeitou: por mais que tentasse
racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer
tentativa de racionalização ou enquadramento. Mas não era medo, embora já não
tivesse certeza de até que ponto o olhar dele mesmo revelava uma verdade óbvia
ou uma outra dimensão de coisas, inatingível se não a amasse tanto. Essa dúvida
fez com que oscilasse, de tal maneira precário que novamente precisou falar:
– Você não passa de um substantivo feminino — disse, e quase
sem sentir acrescentou - ... mas eu te amo tanto, tanto.
Recompôs-se, brusco. Não, melhor não falar nada. Admitia que
não conseguisse controlar seus pensamentos, mas admitir que não conseguisse
controlar também o que dizia lançava-o perigosamente próximo daquela zona que
alguns haviam convencionado chamar loucura. E essa era a primeira vez que se
descobria assim, tão perto dessas coisas incompreensíveis que sempre julgara
acontecerem aos outros — àqueles outros distanciados, melancólicos e enigmáticos,
que costumava chamar de os-sensíveis —jamais a ele. Pois se sempre fora tão
objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era plenamente respirável,
e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o que era corriqueiro e
normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia coisas que nunca tinham
sido suas.
Então, admitiu o medo. E admitindo o medo permitia-se uma
grande liberdade: sim, podia fazer qualquer coisa, o próximo gesto teria o medo
dentro dele e portanto seria um gesto inseguro, não precisava temer, pois antes
de fazê-lo já se sabia temendo-o, já se sabia perdendo-se dentro dele —
finalmente, podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira
estaria perdido dentro dela.
Todo enleado nesse pensamento, tomou-a entre os dedos de
pontas arredondadas e colocou-a em volta do pescoço. Os dez dedos esmeraram-se
em laçadas: segurou as duas pontas com extremo cuidado, cruzou a ponta esquerda
com a direita, passou a direita por cima e introduziu a ponta entre um lado
esquerdo e um lado direito. Abriu a porta do guarda-roupa, onde havia o espelho
grande, olhou-se de corpo inteiro, as duas mãos atarefadas em meio às pontas de
pano. Sentia-se aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se
apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo. Vou
viver uma madrugada de domingo — disse para dentro, num sussurro. — Basta
apertar. Mas antes de apertar uma coisa qualquer começou a acontecer
independente de seus movimentos. Sentiu o pescoço sendo lentamente esmagado,
introduziu os dedos entre os dois pedaços de pano de cor vagamente indefinível,
entremeado por pequenas formas coloridas, mas eles queimavam feito fogo. Levou
os dedos à boca, lambeu-os devagar, mas seu ritmo lento opunha-se ao ritmo
acelerado da gravata, apertando cada vez mais. Ainda tentou desvencilhar-se
duas, três, quatro vezes, dizendo-se baixinho do impossível de tudo aquilo, o
pescoço queimava e inchava, os olhos inundados de sangue, quase saltando das
órbitas. Quando tentou gritar é que ergueu os olhos para o espelho e, antes de
rodar sobre si mesmo para cair sobre o assoalho, ainda teve tempo de ver um
homem de olhos esbugalhados, boca aberta revelando algumas obturações e falhas
nos dentes, inúmeras rugas na testa, escassos cabelos despenteados, duas pontas
de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito, uma das mãos
cerradas com força e a outra estendida em direção ao espelho — como se pedisse
socorro a qualquer coisa muito próxima, mas inteiramente desconhecida.
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