Hilda Hilst
Vamo brincá de
ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos
todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchendo a cara e só zoiando? Vamo
brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num
festival de povão e dotô? Vamo brincá que a peste passô, que o HIV foi
bombardeado com beagacês, e que tá todo mundo de novo namorando? Vamo brincá de
morrê, porque a gente não morre mais e tamo sentindo saudade até de adoecê? E
há escola e comida pra todos e há dentes na boca das gentes e dentes a mais,
até nos pentes? E que os humanos não comem mais os animais, e há leões lambendo
os pés dos bebês e leoas babás? E que a alma é de uma terceira matéria, uma
quântica quimera, e alguém lá no céu descobriu que a gente não vai mais pro
beleléu? E que não há mais carros, só asas e barcos, e que a poesia viceja e
grassa como grama (como diz o abade), e é porreta ser poeta no Planeta? Vamo
brincá
de teta
de azul
de berimbau
de doutora em
letras?
E de luar? Que é
aquilo de vestir um véu todo irisado e rodar, rodar...
Vamo brincá de
pinel? Que é isso de ficá loco e cortá a garganta dos otro?
Vamo brincá de
ninho? E de poesia de amor?
nave
ave
moinho
e tudo mais
serei
para que seja
leve
meu passo
em vosso
caminho.*
Vamo brincá de
autista? Que é isso de se fechá no mundão de gente e nunca mais ser cronista?
Bom-dia, leitor. Tô brincando de ilha.
* Trovas de muito amor para um amado senhor -
SP: Anhambi, 1959.
(Segunda-feira, 16 de agosto de 1993)
Crônica de Hilda
Hilst para o "Correio Popular" de Campinas-SP
1 comentários:
Bom esse texto!!
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